quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Alexandre Lydia


Alexandre Lydia é um dos fundadores do 'Cactos Intactos', guerrilha cultural que promete esquentar os mornos debates sobre cinema e o fazer cinematográfico.

Esta entrevista é uma prova disso.

Qual é a importância histórica que o curta-metragem tem no cinema brasileiro?
Estou longe de ser um historiador do cinema, mas me parece um erro encarar os curtas como longas encabulados ou atrofiados. Acredito na especificidade estética do formato, a despeito da sua patente inviabilidade comercial. Ou talvez até por causa disso. O fato de ser uma não-mercadoria aproxima o universo dos curtas do universo da poesia e talvez da música erudita. Não respeito cineastas que desprezam o curta em nome de uma duvidosa profissionalização do ofício, isto só prova que eles estão subordinados a uma lógica burguesa pautada precipuamente pelo ganho material e a repercussão midiática. O curta-metragem consiste em uma formidável ferramenta de guerrilha cultural, assim como o spam na internet e a nova música engajada independente.

Por que os curtas não tem espaço em críticas de jornais e atenção da mídia em geral?
Os curtas só terão este espaço nos meios de comunicação quando tiverem espaço para exibição e veiculação. Além disso, para artistas verdadeiros importa muito menos ser badalado e incensado pela imprensa do que ter chance de mostrar o seu trabalho. Penso que este tipo de filme deveria ser exibido gratuitamente em telões ao ar livre. Os curta-metragistas seriam remunerados de forma compatível ou subsidiados para produzir. O cinema não pode se tornar um lazer de elite. Senão todo filhinho de papai entediado com o play station 3, vai pedir de aniversário uma câmera de alta definição e uma ilha de edição digital para tirar onda de artista e circular pelos festivais exibindo suas roupinhas da moda, penteados estapafúrdios e tatuagens do Che Guevara. Na verdade, isto já acontece em parte.

É possível ser um cineasta só de curta-metragem? Vemos que o curta é sempre um trampolim para fazer um longa...
O curta nem sempre é um trampolim para fazer um longa, até porque fazer um longa com essas leis de incentivo à cultura vigentes está ficando cada dia mais complicado e proibitivo, para não dizer inexeqüível. O Cinédrio (com c mesmo) é uma realidade inescapável no Brasil. Você precisa se tornar uma figurinha carimbada para ser respeitado como cineasta. Se o seu filme não tem atores de tv, nem você é enturmado com as panelinhas que vicejam em torno das estrelas globais e celebridades passageiras, vai ter que se contentar com uma semaninha em cartaz com as salas vazias e críticas anódinas que ninguém lê, só você. Isto quando consegue fazer o filme, o que já é uma verdadeira façanha nos dias que correm. Ou se arrastam.

O curta-metragem é marginalizado entre os próprios cineastas?
O curta metragem é marginalizado pelo sistema. O mesmo acontece com a poesia e, em menor escala, com o teatro. Não existe verdadeira arte que não seja marginal, essa é que é a verdade. Foi absorvido, cooptado, incorporado não é mais arte, é outra coisa: entretenimento, diversão, alienação, propaganda disfarçada. Menos arte.

Como e pra que surgiu a idéia de criar o 'Cactos Intactos'?
O Cactos Intactos tinha tudo para ser um coletivo anarquista de cultura, mas na prática acabou convertido em um pseudônimo meu. Mas é e sempre será um grupo de guerrilha cultural, mesmo que esteja se tornando gradativamente uma espécie de bloco do eu sozinho. Concordo com Gilles Deleuze e Felix Guattari, os criadores da esquizo-análise. Para eles, somos todos grupelhos. O conceito de unidade psicológica ou a noção de identidade cartorial sempre me pareceram absolutamente questionáveis.

Minha intenção era também desviar o foco compulsivo que o mundo artístico dispensa às individualidades singulares. Fazer cinema como se faz música em uma banda foi uma das idéias que me inspirou. Pode parecer ingênuo e realmente é porque sempre vai haver um arrivista ou um aproveitador a fim de tirar partido de iniciativas como esta. Eu mesmo estou sendo agora alvo da desfaçatez e do oportunismo de um antigo colaborador do grupo, cujo fracasso subiu-lhe à cabeça. Por conta disso, contra a minha vontade, comecei a assinar os meus curtas como um diretor convencional. Para me prevenir do assédio de espertalhões inescrupulosos. Tem de tudo neste mundo. Até amigos de mais de 25 anos dispostos a aplicar golpes baixos e rasteiras traiçoeiras em quem se meter a besta bancando o anarquista romântico ou o poeta nefelibata. Cuidado!

Vocês já produziram mais de 20 curtas, qual é o legado que vocês pretendem deixar no cinema?
Produzimos 20 curtas em dois anos, 2005 e 2006, no decurso de uma espécie de maratona, que constituiu para mim, pelo menos, um curso prático e autodidata de cinema. Eu sempre fui roteirista, inclusive premiado em Gramado, mas nunca havia dirigido filmes. Esses primeiros vinte curtas estão enfeixados no álbum duplo em dvd Kyne-Makyna. Há um inegável componente diletante que nós assimilamos do “do it yourself” punk. Transplantar este estandarte punk e anarquista da música para o audiovisual talvez seja o principal diferencial do Cactos Intactos em relação a outros grupos que militam e militaram na área. Por favor, não nos chamem de Produtora porque isto representaria um insulto para nós. Nosso livro A Hora do Spam ou O Email é a Mensagem, na iminência de ser lançado, desenvolve minuciosamente todas essas teses e conjecturas a respeito do cinema e da cultura em geral.

Como é feita a escolha para fazer curtas? Vocês já homenagearam a Helena Ignês e o Glauber Rocha... por aí temos uma pista?
Produzimos curtas dos mais variados gêneros, metade documentais, metade fictícios. Homenageamos Glauber em Glauberama, um poema audiovisual. Helena Ignez protagonizou uma obra de ficção (Helena Ignez, Mulher de Sonhos) e é uma das principais entrevistadas no documentário sobre a obra de Rogério Sganzerla, "A Verdade Não é Tudo". 

O tema dos filmes surge aleatoriamente, ao sabor do meu processo criativo como roteirista e cineasta. Sempre foi assim, mesmo na época em que ainda nos empenhávamos, em vão, para viabilizar a utopia da criação coletiva. A grande virada se processou por intermédio da constatação filosófica de que, no fundo, somos plurais, versáteis, ecléticos e multifacetados. Desta forma, logrei manter a atmosfera vibrante de um grupo, ainda que operando de uma perspectiva autoral, o que pode ser visto como paradoxal, mas é apenas dialético.

Atualmente vocês estão preparando um longa metragem. Quais as dores e as delicias de partir para este desafio?
"Papai Doidão" será a primeira comédia psicodélica da história do cinema brasileiro, segundo o insuspeito Neville D´Almeida, cineasta com quem aliás fizemos um doc chamado Dogneville. Parafraseando Lírio Ferreira, será o Ácido Movie. Se Cidade de Deus e Meu Nome Não é Jonhnny são obras elaboradas do ponto de vista dos traficantes e Tropa de Elite, do ponto de vista da polícia, Papai Doidão será o primeiro filme a representar o último vértice do triângulo, o enfoque dos usuários contumazes de substâncias psicoativas, depreciativamente conhecidos como viciados. Será provavelmente o filme mais transgressivo e irreverente de que já se teve notícias. Quem viver verá e quem morrer, reviverá para ver.

Pensa em dirigir um curta futuramente?
Nossos 3 últimos curtas, ainda inéditos serão exibidos sem cortes em um coquetel na cinemateca da Livraria da Travessa do Shopping Leblon, em data ainda a ser definida até o final do ano. São eles: 1) Além da Lenda (abordagem documental do grandioso espetáculo - em ambos os sentidos - de 27 horas de duração sobre a guerra de Canudos, encenado por José Celso Martinez Corrêa em 2007, a partir do romance Os Sertões de Euclides da Cunha. 2) Animais Domésticos (Curta-metragem digital de ficção em HD, no qual dois irmão compartilham o amor de uma mesma mulher em moldura visual retrô-atemporal.) e 3) O Primata Poliglota (outra curta de ficção em HD com Antônio Calloni e Luciana Vendramini, em fase de finalização).