domingo, 14 de junho de 2009

Rubens Francisco Lucchetti



O CENARISTA

O cenarista é quem compõe argumentos para o filme. Ora, a composição pode realizar-se das mais diversas maneiras. Através da criação direta, em que se imaginam várias cenas harmoniosamente desenvolvidas, segundo os requisitos e necessidades próprias do cinema e, antão, se escreve um argumento puramente cinematográfico, isto é, para uso exclusivo do cinema, ou se realiza uma composição de elementos retirados de qualquer gênero literário já existente, o teatro o romance ou o conto.

Extraídos os elementos, o cenarista tem de recriá-los dando-lhes características diversas das que originalmente possui. Incumbe ao cenarista extrair do romance, da peça do teatro ou do conto, um argumento próprio à expressão cinematográfica. Trata-se, em última análise, de uma adaptação às realidades do cinema.

Como se vê, esse trabalho exige uma escamoteação. Sendo a transposição em termos cinematográficos de uma obra concebida em termos literários, naturalmente requer a profissão de cenarista conhecimentos naturais ou adquiridos de criação dramática ou romanesca, assim como a capacidade de tornar harmônicos com as exigências técnicas e artísticas do filme aqueles dons ou conhecimentos.

Do mesmo modo que não se aprende a escrever romances, contos ou peças teatrais, também não se aprende a criar cenários. O cenarista nasce com a vocação. Não obstante, urge deixar de lado os preconceitos e as idéias feitas e mostrar que o gênio não se alimenta de nada, antes exige para o seu total desenvolvimento condições de estudo e de experiência. Dos milhares e milhares de cenários que são cotidianamente enviados às casas de produção cinematográfica, isto é, a expressão visual.

Entretanto nunca se deve deixar sem exame esses cenários. Pois o mais banal pode conter uma cena, uma situação, talvez apenas um ângulo ou uma sugestão que incorporados a outros conduzem à realização mais auspiciosa. Compreenderam algumas empresas a necessidade desse constante exame e, para tal fim, criaram departamentos especializados, que recebem originais e os estudam cuidadosamente. Todos os livros que se lançam, todas as peças que se representam são logo examinadas sob o ponto de vista das possibilidades da sua transposição cinematográfica.

Empresas e jornais especializados organizam concursos de cenários: nestes se notam, geralmente, a abundancia de aspirantes a cenaristas e a sua ignorância técnica. A maioria dos originais apresentados acusam o desconhecimento completo das condições especificas da expressão visual. Um argumento cinematográfico é o que se chama sinopse, quer dizer, uma exposição da ação cujo desenvolvimento nunca excede a cinco ou dez páginas datilografadas. É essa quantidade suficiente para se verificar se há aí matéria cinematográfica. É o cenário mais especificamente, o desenvolvido deste argumento.

Para realizá-lo é mister transcrevê-lo numa continuidade dramática dividida em seqüências, estabelecendo-se depois o roteiro (ou découpage) para cada cena, com o seu diálogo próprio e finalmente o roteiro técnico, “prefiguração do que será depois de rodado e montado, o filme”.

É portanto, o cenarista, quem dá a idéia o seu desenvolvimento dramático, seja o argumento original ou uma obra literária já existente. Não se pode, porém, confundir o argumento de um filme com uma novela ou um conto ou uma peça teatral. Acontece isso freqüentemente porque não existe ainda uma educação orientada para a criação cinematográfica. A história, num cenário, importa pouco. Naturalmente, é mister procurar a que não seja muito banal, nem muito complexa. Pode considerar-se uma boa história aquela que reúne um mínimo de interesse. Deve ter sempre o cenarista o cuidado de conhecer a técnica do filme. Tomando consciência dela, naturalmente vai adquirindo um conjunto de conhecimentos e experiências nitidamente cinematográfico.

A realidade do cinema sendo diferente por expressão à da literatura ou à do teatro, deve-se pensar em imagens e não em símbolos. O cinema é, por excelência, o reino das imagens. O cenarista que não compreender essa exigência fundamental não poderá nunca criar ou adaptar um bom cenário. Poderá, quando muito, fazer teatro ou literatura, através do cinema. Evidentemente não se consegue essa possibilidade senão pelo estudo técnico do “métier”. Atualmente ainda se contam poucos cenaristas que não tenham formação nitidamente literária ou teatral. Amanhã, nenhum cenarista poderá prescindir do exercício estritamente cinematográfico. É essa uma conseqüência fatal do desenvolvimento da indústria e da arte do cinema.

A função do cenarista é, estritamente, a de fornecer ao diretor um elemento – a idéia –, como o dialoguista fornece o diálogo, o músico a música e o ator o seu jogo. Mais importante porém se tornará o papel do cenarista se ficar a seu cargo o desenvolvimento ou continuidade dramática do argumento. Quando se trata do filme, de qualidade raramente participa o diretor na adaptação do cenário. Entre o cenarista que dá argumento lhe assegura a execução, colocam-se vários intermediários cuja tarefa é projetar o filme sobre o papel, isto é, dar à idéia do cenarista o desenvolvimento necessário para que os técnicos lhe dêem realização. Este trabalho se intitula roteiro ou projeto a “découpage” do filme. Deve existir a mais estreita colaboração entre esses elementos a fim de assegurar-se a homogeneidade do filme. Este espírito de criação coletiva, este espírito de equipe que anima o filme, é, exatamente, a sua marca distinta.

Do mesmo modo que não se concebe um romance escrito a quatro ou cinco mãos, também não se admite um filme realizado por uma só pessoa.


Publicado pela Revista de Cultura Cinematográfica
Nº 36 – Setembro/Dezembro de 1963
Belo Horizonte - MG