quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Conheça as várias faces de R.F. Lucchetti - parte 5



IDEOLOGIA: O INSTINTO SUPERA A RAZÃO
Audo Daniel Sairre

O filme “O estranho mundo de Zé do Caixão” é composto por três pequenas histórias: “O fabricante de bonecas”, “Tara”, e “Ideologia”. Esta película de 1968 é roteirizada por Rubens Francisco Lucchetti e dirigida por José Mojica Marins. “Ideologia” é a história preferida de Lucchetti e é que mais chama a atenção.

O primeiro conto, “O fabricante de bonecas!, relata a história de uma gangue que invade a casa de um homem que fabrica bonecas. Os delinqüentes estupram as quatro filhas do artesão, além de roubá-lo. O que os quatro criminosos não sabem (um deles é interpretado por Luis Sérgio Person, renomado diretor de cinema) é que o pai das meninas costuma usar olhos humanos nas bonecas que faz. A partir daí, entra o terror no filme. Os olhos dos bandidos são retirados, enquanto suas cabeças são mostradas uma por uma, sangrando lado a lado. As quatro mocinhas sorriem satisfeitas.

“Tara” é a segunda história. Um verdadeiro pobretão, corcunda, vendedor de balões, é apaixonado por uma moça de sua rua, mas nunca se aproximou dela. No dia do casamento da jovem, a moça é assassinada por uma mulher enciumada. Depois do enterro, o homem que sempre fora apaixonado por ela, abre o seu caixão, retira o corpo e faz sexo com o cadáver. Os balões do corcunda horripilante sempre fazem parte das cenas, criando um estilo tenso e assustador nas filmagens. Novamente, os sintomas do mal aparecem.

Segundo relatos do livro de André Barcinski e Ivan Finotti, “Maldito”, Lucchetti achava a história tão forte que resolveu roteirizá-la sem diálogos, somente com sinais e cenas que remetessem aos acontecimentos. No roteiro original de Lucchetti, depois que o vendedor abrisse o caixão ele teria alucinações em que dançava uma valsa com a amada. O diretor não gostou e mudou o final.

“Ideologia” foi a história que Mojica teve mais problemas com a censura. É a trama mais marcante do filme, onde as falas e interpretações dos personagens se destacam através do roteiro de Lucchetti.

Oaxiac Odez é um professor que defende que o instinto é sempre superado pela razão. Em um programa de TV o professor expõe suas teses e pensamentos. Ali, vemos um Mojica seguro de si mesmo, inteligente e misterioso – talvez, com traços da época em que Lucchetti escrevia histórias policiais.

O professor Oaxiac Odez convida o apresentador do programa, Dr. Alfredo, para ir a sua casa. Lá, Oaxiac prende o apresentador e a mulher dele, ambos em jaulas separadas.

Encarcerado, o casal recebe, diariamente, a visita de Oaxiac Odez, que lê trechos da Bíblia. É uma seqüência de cenas digna do mais puro horror.

Depois de sete dias preso, sem comida e nem água, Dr. Alfredo tem seu pescoço cortado por Oaxiac Odez. Em seguida, a mulher do apresentador, Vilma, mata sua sede com o sangue do marido. Oaxiac Odez proclama feliz e satisfeito: “Mais uma vez o instinto superou a razão... e o amor”.

Nada mais sádico e horrível (no bom sentido) tinha sido feito no cinema brasileiro até aquele take.

O DESPERTAR DA BESTA: UM SOCO NO ESTÔMAGO NO BRASIL DA DÉCADA DE 60
Valter Martins de Paula

Em 1969, quando o personagem Zé do Caixão já era conhecido nacionalmente, por meio de vários veículos de comunicação, começou a ser produzido aquele que seria o filme mais polêmico das carreiras de Rubens Francisco Lucchetti e José Mojica Marins: ‘Ritual dos sádicos’ (ou, como mais tarde ficou conhecido, ‘O despertar da besta’).

A idéia do roteiro era transpor a figura enigmática de Zé do Caixão baseado em vários pontos-de-vista da sociedade brasileira. Ou seja, desvendar como pessoas comuns enxergariam o personagem em seus delírios mais íntimos. Talvez tenha sido pelo tema desafiador que o filme (que teve apenas um cenário fixo) tenha sofrido tantos problemas em sua estrutura e na sua compreensão.

A trama de ‘O despertar da besta’ gira em torno da evidência do personagem de Zé do Caixão. Um psiquiatra, interpretado por Sérgio Hingst, “contrata” quatro pessoas de diferentes classes sociais, para estudar o impacto da figura de Zé do Caixão, sob o efeito de drogas. A primeira meia hora de filme é um pouco desconexa, pois evidencia a vida e rotina de cada uma das pessoas.

O filme foi inovador, pois trouxe a inserção de cores nos sonhos e delírios dos personagens. A grande sacada do roteiro foi poder estudar, de forma profética e não-linear, o efeito do personagem no inconsciente coletivo. Os sonhos misturam sexo, perversão e sadismo de maneira bem clara e definida, fazendo um impressionante retrato da hipocrisia brasileira que reinava nos anos 60. vetado pela censura federal, mesmo após inúmeros cortes, só sendo liberado 13 anos após a produção finalizada, ‘O despertar da besta’ nunca foi lançado comercialmente no Brasil. Ganhador de prêmios de melhor ator para José Mojica Marins e melhor roteiro para Rubens Francisco Lucchetti, no Segundo Rio Cine Festival, em 1986, o filme não encontra parâmetro com outras obras na filmografia brasileira. Sem exageros, é um filme que permanece atual e que serve para mostrar toda a competência e capacidade narrativa de Rubens Francisco Lucchetti.



FRAGMENTOS

Esta página é dedicada a pequenos fragmentos de memória de Rubens Francisco Lucchetti, assim como pensamentos de família, trabalho, condições de existência e outras coisas interessantes... Afinal, um homem tão completo como este, repleto de atividades e pensamentos, não deixaria perder a sua rica memória...

“Na minha concepção uma igreja deveria ser um hospital para pecadores, não um museu para santos”.

“Me chamar de escritor é como colocar um elevador num alpendre: não combina”

“Escrever é fácil, basta você se sentar e olhar fixamente para uma folha de papel em branco, até que se formam na sua testa gotas de sangue”.

“Nunca deixei de ser um experimentalista radiofônico. Mesmo quando estou escrevendo para o cinema ou quadrinhos, ou uma novela, sinto-os transformados em sons”.

“Meia-noite: os ponteiros de mãos unidas”.

“Se quiser evitar a censura alheia, não diga nada, não faça nada e não seja absolutamente nada”.

“A diferença entre o cinema e a televisão é que cinema se assiste e televisão se vê”.

“Tinha os olhos tão tristes, como se tivesse presenciado todas as misérias do mundo”.

“Que é a vida? Se você souber a resposta, não haverá mais perguntas”.

“Por que será que toda a pessoa bem sucedida acha que sabe tudo?”.

“O verdadeiro perigo de nossa era tecnológica não é tanto que as máquinas passem a pensar como homens, mas que os homens comecem a pensar como máquinas”.

“Parentes são como carros usados: quebram quando mais precisamos deles. Pena que não os podemos trocar todos os anos”.

“Gosto da noite. Andar pelas ruas sombrias. Pareço estar em outro mundo. Às vezes você dá de cara consigo mesmo”.

“Um dia me perguntaram: - Você acredita em demônios? Como posso acreditar num ser que teria sido criado por Deus, e Deus seria justo e bom se houvesse criado seres devotados eternamente ao mal? Só um inescrupuloso poderia acreditar num ser maligno, um desclassificado, fazendo de Deus, um Deus mal e vingativo”.

“A voz feminina antes de sua transformação biológica, é muito fina e, depois disso, se torna necessariamente erótica”.

“Ás vezes fico pensando: o que uma pessoa cega de nascença sonha?”.

“O destino só leva a pessoa até o meio do caminho: o restante ela completa sozinha”.

“É sempre temeroso a compra de um objeto num antiquário. Simplesmente porque todo objeto fica impregnado das emanações daquele que o possui”.

“Não se escreve por inspiração, se escreve por não saber fazer outra coisa”.

“Quando escrevo, mergulho no meu mundo, e sou o único artífice, crio e destruo, sou um deus e o mundo, como está estabelecido e que desprezo passa a não existir e então sou feliz”.

“Um homem não nasce completamente senão depois que morre. Porque lamentar, então, o aparecimento de uma nova criatura entre os imortais? Nós somos espíritos. Que nos emprestam corpos, com que possamos fluir prazeres, aumentar os nossos conhecimentos ou fazer bem aos nossos semelhantes, é um ato de bondade e de benevolência de Deus. Quando não nos servem mais estes propósitos, quando nos dão dores ao invés de prazeres, quando se tornam uma carga invés de um auxílio, é igualmente por um ato de bondade e de benevolência que Deus nos fornece um meio de nos desembaraçarmos deles. Esse meio é o desencarne”.

“Até há alguns anos, o cinema e a televisão detinham entre si a concorrência ao livro, esta distinção entre a atividade voluntária do pensamento e o estado positivo das emoções que pareciam assumir uma importância que representaria, talvez, um papel histórico na evolução da humanidade: o fim da cultura do livro. Porém, nada disso aconteceu. Mas com a chegada do computador, esse fim está inexoravelmente decretado. Tenho a certeza que entramos no terceiro milênio totalmente bestificados, sendo o livro algo assim como as gravações de óperas são nos nossos dias”.

“Sempre que tiver muita pressa em ir de um lugar para outro, pode-se estar correndo o risco de perder mais do que se ganha com a pressa. Observemos os animais: eles nunca se apressam, exceto quando se vêem em perigo. Como podemos aproveitar se a atravessamos em galope? A rapidez ajuda-nos a nos locomover em menos espaço de tempo, e isso é tudo que se pode dizer em seu favor. Mas, andando-se sempre com pressa, perde-se de ver muita coisa que nos pode causar enorme deleite – apreciar, por exemplo, uma pequena avenca à beira do caminho ou ouvir o canto eternecedor de algum passarinho”.

Jornal Claquete
Edição produzida em dezembro de 2005
Ano I – Edição nº 01

Créditos:

Editor Chefe: Valter Martins de Paula
Editor Assistente: Audo Daniel Sairre
Redação: Amanda Ferreira, Audo Daniel Sairre, Ivani Rosa e Valter Martins de Paula
Assistente de Redação: Felipe Augusto de Souza
Fotografia: Amanda Ferreira, Audo Daniel Sairre, Ivani Rosa e Valter Martins de Paula
Diagramação e Impressão: Enfim Ribeirão Editora e Gráfica Ltda.
Tiragem: 300 exemplares