segunda-feira, 10 de outubro de 2011

BISTURI - Rejane K. Arruda


"O Grande Chefe" de Lars Von Trier.

"Não existe personagem e agora vamos jogar": a preocupação do mestre russo Constantin Stanislavski era formalizar um procedimento para que os atores pudessem articular o seu contexto com o contexto ficcional. Ou seja, lançando mão de verbos-de-ação, subtextos, monólogo interior, objetivos, ações paralelas, esquemas de ações-físicas, memória emotiva (com o seu próprio material) o ator pode dar vida à personagem.

Eugênio Kusnet, diretor e ator do Teatro Brasileiro de Comédia nos anos cinqüenta e sessenta, também evidenciou o jogo quando disse que o ator "evoca a segunda instação (ficção) através da primeira (seu próprio contexto)". Ou seja, o ator ficcionaliza as ações que, de fato, são suas.

No entanto, quem formalizou os operadores deste jogo foi Viola Spolin: divisão-de-foco e instrução. Se, em cena, há "problemas a resolver", "duplos-problemas técnicos" - diz Spolin - tanto melhor. Isto divide o foco. É com a divisão-de-foco que "o espontâneo acontece". De maneira que as instruções tornam-se elementos intrusos bem vindos.

Abre-se a porta, então, para a formulação de modalidades específicas de jogo. A operação de apropriação do contexto próprio que implica, como isntrução, a presença de um caráter fictício, parece estar presente em O Grande Chefe, do diretor dinamarquês Lars Von Trier.

O filme começa com o ator Kristoffer (Jens Albinus) contratado para representar o chefe Svend, inventado por Ravn, verdadeiro dono de uma firma de informática (Peter Gantzler). Ravn manteve Svend virtual durante dez anos e responsabilizou-o por todas as escolhas desagradáveis, enquanto preservava a sua imagem de bonzinho. Só que agora ele decidiu vender a firma e o comprador exige a presença do "grande chefe". Ravn, então, contrata Kristoffer para representá-lo na reunião de venda. Só que as coisas tomam um rumo inesperado.

Na primeira reunião com os funcionários da "sua" firma, Kristoffer precisa revelar o nome do "grande chefe". No entanto, não o sabe. "Vocês podem me chamar de Kristoffer" - diz. "E por que nós lhe chamaríamos de Kristoffer?" - diz um dos funcionários. "O seu nome é Svend E." - diz um outro que recebeu emails do grande chefe. "Isso mesmo, meu nome é Svend". "E o que significa o E" - perguntam.

No passo a passo das sílabas, ele inventa, então, o seu sobrenome. O processo de construção é assumido: "Posso dizer um nome por qual tenho predileção". Esta "borda" entre personagem e ator, entre primeira e segunda instalação, ganha contorno no filme de Lars - justamente por explicitar algo que é geralmente velado. Além disso, escolhas instantâneas, estas que parecem emprestar à performance do ator o espírito do "não-cálculo", da apropriação no aqui e agora, parecem estar presentes no percurso de Kristoffer.

Se os atores têm informações diferentes para jogar, se há coisas que um ator sabe e o outro não, em cena, quando a informação irrompe, a reação é no próprio contexto. Flagrada, esta evoca a ação do personagem. E já que este "real" (relações sociais onde de fato está inserido aquele sujeito) surge, a atuação torna-se "natural" (tomando o termo como problemático, já que se trata da construção de um jogo).

Na primeira cena com o possível comprador da firma, o brilho se deve (em grande parte) ao mau humor de Kristoffer - instalado a partir da surpresa diante do outro que acaba de dizer a sua frase decorada: "Eu sou o presidente da empresa". O desacerto cede lugar à contrariedade (rubaram a minha fala). Se a surpresa foi induzida a partir do desconhecimento do ator Jens Albinus ou se este joga, por exemplo, com "roubaram a minha fala" (elemento que produz sensação), isto implica duas possíveis modalidades de jogo. De qualquer maneira, se ele se surpreende, para o comprador da firma (que nada sabe da farsa) aquela é a reação de Svend (o grande chefe, personagem inventado).

Lars Von Trier parece potencializar "o não saber". Na reunião técnica com a equipe, é preciso falar de informática, assunto do qual Kristoffer nada sabe. Ele está sentado. Um corte e aparece de pé; outro e está novamente sentado; outro corte e o plano está aberto. Na mesma posição ele observa a reação dos funcionários; balança a cabeça, respira, pára, pensa, espera; espera. Vemos uma semântica do tempo entre as falas. Um tempo com ações que significam a partir da situação-dada (elemento em jogo). Os arroubos de pseudo-irritação da performance de Kristoffer se apresentam como uma estratégia para disfarçar o "não-saber". Alcançam a dimensão do cômico com adjetivos como: "Estão horríveis, estão um xixi, estão uma lavagem de porco" - ele desfia a série falando dos números da empresa.

Mais uma reunição e é como se estivessem cansados. Há a preguiça (bem vinda) de atuar, propícia ao cinema. Da boca de um dos funcionários, aparece uma frase musicada. Um outro continua a canção, até que todos cantam. Sem ênfase, no entanto, sem sublinhar o sentido daquilo (apesar deste estar presente). É esta espécie de defasagem entre sentido e falta de ênfase que parece dar poesia à ação; a ausência de ênfase em algo que está evidente.

Quando Kristoffer tenta explicar o porquê não apareceu durante dez anos, é possível que aquilo seja uma fala improvisada em torno do "o quê" em jogo: explicar porque não apareceu durante dez anos. Esta seria uma modalidade específica. Outra modalidade seria o jogo com a fala pronta que, no entanto, é "jogada fora". "Jogar a fala fora" é um jargão dos atores, que acaba por se configurar instrução. Não sublinhar o dito faz aparecer uma cadeia de ações articuladas ao pensamento interno - graças ao corpo presente que preenche, toma tempo e espaço. Este corpo, com olhos, fala coisas que não estão no texto verbalizado. Se podemos lê-lo é porque somos inscritos na linguagem. Se podemos, além desta leitura, seguir caminhos subjetivos diversos, é porque temos singularidade.

Depois que Kristoffer recebe uma surra de um dos funcionários, temos um longo tempo de vazio. Há um pêndulo entre ações e falas esvaziadas de emoção - a partir das quais podemos ler o não dito - e pequenas explosões emocionais. Quando Ravn diz a Kristoffer "Subjulgue-os, ok?", a fala está encharcada de voracidade e energia. Aparece uma semântica da atuação - já que, tanto os tempos de distanciamento, relaxamento, distensão, distração (digamos assim), quanto os tempos de "tomação", significam - se dão a ler.

Com freqüência, há o desdobrar do tempo a cada frase enunciada. Admitimos a hipótese de que o silêncio é estendido a partir da regra ("estender o silêncio"); admitimos que há ações resultantes e que a instrução se torna "orgânica", deixa de roubar todo o foco-de-atenção, produzindo uma marca corporal que implica o estilo de cada um, ou seja, como cada ator ocupa este tempo de escansão. Admitimos que esta marca torna-se "segunda pele" (termo stanislavskiano); a escansão do tempo como um hábito cênico; um repertório que pode dividir o foco com o que surge (no corpo) impregnado das relações pessoais com as imagens secretas (internas) produzidas na análise da personagem (seu caráter) ou o que irrompe surpreendentemente do outro e do instante. A regra em jogo racha o foco com o que o ator "segreda" de identificação, situação paralela. Percebe-se, assim, atravessado pelo registro corporal que, na medida em que causa sensação (prazer), pode ser repetido e manipulado.

Na última cena, a escansão do tempo ganha o estatuto de paródia quando Kristoffer brinca de adiar a assinatura da venda da firma. Ele chega a fazer aviãzinho com a caneta, que demora a encontrar o papel. "Ele está fazendo o seu show, quer que todos o admirem" diz a sua ex-mulher, que é a advogada do comprador. De fato, ele sacode a bochecha, como os atores costumam fazer antes de entrar em cena. "Não ouço direito o personagem" - e pede silencio ao recinto. "Quais são seus valores morais? Assinaria ou não a venda? Eu não tenho a menor pista. Há simpatias e antipatias guerreando". Aponta o dedo para o ar. Mais um tempo. "Consegui". Em seguida, nova espera.

Há também os momentos de emoção genuína e, neste caso, a escansão implica o tempo de um transbordamento. Dizemos que "o interno está preenchido", mas é algo que toma o corpo todo.

Diferente de outros filmes de Lars Voon Trier, onde a câmera persegue o ator, O Grande Chefe traz o revezamento de planos com a câmera fixa. Reações e falas são freqüentemente enquadradas sozinhas. Por exemplo: "(Ravn) Não me irrite / Corte / (Ele limpa a testa) / Corte / (Ravn) Isso não faz diferença / Corte / Corte / Corte / (Ravn) Você tem que dizer o que está no roteiro / Corte / Corte / Corte". Assim, é possível, graças à fragmentação do suporte material que capta a imagem, provocar reações nos atores a partir de qualquer outro contexto que não o ficcional e, depois, montá-las. É na montagem que as reações podem ser encadeadas de maneira a seguir a lógica da ficção e a linearidade do percurso da personagem. Esta operação é possível não apenas graças à linguagem do cinema, mas também graças à clivagem do trabalho atoral: tanto há dois contextos diferentes (ficcional e próprio) em jogo, quanto a dvisão externo-interno. Elementos externos, visíveis, puxam o foco, que permanece dividido com aqueles subjetivados, escondidos (que também o situam). Em se tratando de ator, podemos apontar que um dos operadores da sua arte é a divisão, que, por sua vez, implica o seu jogo.

Rejane Kasting Arruda, é atriz e pesquisadora. Atua em cinema e teatro. Faz pesquisa na Universidade de São Paulo junto ao Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do Ator. Ministra aulas de atuação para cinema. Participou dos filmes Corpo, O Veneno da Madrugada, Tanta, Iminente, Edifício do Tesouro e Medo de Sangue, entre outros. É também colunista do blog Os Curtos Filmes, onde assina uma coluna mensal.

rejane.arruda@usp.br

Nota do blog: Segue link do trailer ‘Medo de Sangue’, filme no qual Rejane participa.

http://www.youtube.com/user/rejanearrudaatriz?feature=grec#p/u/15/4lbDzBav_jU