domingo, 4 de agosto de 2013

R.F.Lucchetti: Memória Cinematográfica


O GESTO
Rubens Francisco Lucchetti

“Rei, nas noites de inverno, quando, diante duma grande lareira, tu e teus companheiros estais amensedados, acontece, às vezes, que um grande pássaro entra por uma abertura, esvoaça sobre a mesa e sai pela outra extremidade. Um momento ele fica na luz e no calor; mas, antes de entrar, onde estava? E, quando saiu, na noite e na tempestade, para onde foi?

Dum poema de Bede, transcrito dum livro póstumo de Monsenhor Duchesne.

Manhã agradável, como todas as manhãs de sol.

De repente, ela surgiu diante de mim, como que vindo do nada. Então, lembrei-me do poema de Bede, porque, como o pássaro descrito no poema, ela surgiu como por encanto, como se não vivesse antes nem depois, como se não existisse. Sim, era exatamente essa a sensação que me produziu seu encontro.

Era jovem, muito jovem. Bem-feita de corpo, com uma sexualidade a escorrer-lhe dos olhos e da boca. Seus fulvos cabelos estavam tombados negligentemente, orgulhosamente... pelos seus ombros nus. A blusa moldava-lhe o busto, e a bolsa a tiracolo dava-lhe uma aparência agressiva. Seu porte fino e seu delicado perfume fizeram-me parar.

Parei para melhor apreciar aquele pedacinho da Natureza.

Ela passou alheia a tudo, indiferente a todos os olhares. Sua sombra esbateu-se pelo muro e, por um momento, confundiu-se com a minha, o que bastou para meu consolo.

Depois, continuou seu caminho... sempre alheia, como infinitésima parte de um sistema solar ou fragmento de um poema... ou visão provocada por um entorpecente... ou qualquer coisa leve como um pensamento, uma pluma, um beijo nos olhos, fumaça tênue duma chaminé, uma nuvem branca num céu de fim de tarde.

Seus pés, a saltitar, ritmavam música na calçada, como se fossem os dedos de fina concertista brincando de Chopin no teclado de um piano...

Aí, veio o gesto. O gesto espontâneo, o gesto que, assim como o sorriso da Gioconda, serviria para imortalizar toda uma vida. Seu gesto era digno de ser imortalizado na tela ou no poema de algum artista...

Foi um gesto simples; porém, como todas as coisas simples, cheio de vida: principiou a subir os degraus da escada da igreja (iria dialogar com alguma santa?), parou e irreverentemente ajustou a meia, acertando o fio que estava fora de linha. E nesse simples gesto pude ver resumido todo o Universo.

Um garoto, um engraxate, postado no início da escada, murmurou, num suspiro prolongado:

– Ah, meu Deus, por que, em vez de engraxate, não me fiz massagista?

Rubens Francisco Lucchetti é ficcionista e roteirista de Cinema e Quadrinhos