segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Os Trapalhões: Neila Tavares


Neila Tavares
Atriz


Você atuou no filme Bonga, O Vagabundo. Como e por quem recebeu o convite para atuar nesse filme? Como foi a experiência?
Não tenho hoje uma lembrança muito clara. Mas eu protagonizava uma novela na extinta TV Tupi, Enquanto Houver Estrelas. Acredito que tenha sido por esse caminho.

Bonga, O Vagabundo é de 1971 e estrelado apenas por Renato Aragão. Quais as suas lembranças dessa fase pré-Trapalhões?
Renato sempre foi competentíssimo, afetuoso, engraçado, romântico, decente... Talvez seja esse o carisma do Didi. Didi é o Renato.

Renato Aragão já sinalizava, naquela época, a intenção de formar um quarteto?
Bem, antes do quarteto, foi a dupla Didi e Dedé, né? Não sei se já pensava nisso. E a verdade é que em filmagem, no ritmo em que Victor Lima filmava, não se tinha muito tempo de conversar, trocar ideias... Mas o que posso dizer é que no segundo filme que fiz com Renato, Ali Babá e os Quarenta Ladrões, já era a dupla Didi e Dedé.

Bonga foi dirigido por Victor Lima, um dos mais experientes diretores com quem você já trabalhou e que, nas suas palavras, foi também o artista que influenciou toda a sua vida. Gostaria que falasse sobre ele.
Victor Lima era um mestre. Dirigiu mais de cem filmes e tinha um domínio absoluto de seu ofício. Nunca se irritava, nunca perdia o humor... dirigia brincando, filmava com uma rapidez impressionante e uma competência de tirar o chapéu. Não fazia mistério, não fazia pose de diretor... E o respeito da equipe por ele era absoluto. Victor Lma fazia um plano de filmagem que parecia impossível de ser cumprido. Com cinquenta tomadas num dia, e ainda com cenas de ação. Tudo acontecia na hora certa, sem espera. Era um plano perfeito, com opções de interior e exterior (caso a luz do dia não fosse boa para exterior). A luz era montada no tempo certo, chegavam os atores; e as coisas aconteciam, sem as esperas de hoje. Diz-se agora que, para o ator, o cinema é a “arte da espera”. E, muitas vezes, quando acabávamos, ainda havia luz.

Poucos conhecem a história e trajetória de Victor Lima. Na sua opinião, qual a razão disso?
Talvez porque fizesse filmes comerciais, para grandes plateias. Era o que gostava e o que queria. Não se arvorava de grande artista, não tinha pretensão nenhuma de fazer “filme de arte”. Só queria fazer benfeito o que fazia. Era um contador de histórias. Em Ali Babá, além de fazer o primeiro papel, eu também fui assistente de direção. E ali é que eu tive a oportunidade de aprender mais sobre cinema que em todo o resto da minha vida. Aprender com Victor Lima. As equipes eram muito pequenas naquele tempo. Só havia um assistente de direção, que muitas vezes se encarregava também da continuidade de cena, como foi nesse caso. Não havia os diretores de arte, os foquistas, os preparadores, essas centenas de especialidades... Então, trabalhamos muito estreitamente.

Victor foi o primeiro diretor do Renato. A escolha foi do Renato? Como se deu esse convite?
Não sei responder a isso. Quando cheguei, Renato e Victor já estavam fechados nessa parceria. Já vinham trabalhando há meses no projeto do filme, no roteiro.

Bonga, o Vagabundo foi filmado onde?
No Rio de Janeiro. Muitas locações. Mas todo no Rio.

Lembra em qual bairro? Região?
Se não me falha a memória (ela já falha com facilidade), entre São Conrado e Barra da Tijuca (RJ). Pelo menos, minha parte foi filmada por ali.

Como foi a sua participação no filme? Como compôs a sua personagem?
Com Victor Lima, as coisas eram muito simples: ele passava o que queria do ator, explicava a cena, fazia um ou dois ensaios e, pronto, ação. Na maioria das vezes, valia de primeira, a não ser nas cenas mais complicadas, com muita gente e muita ação.

Quais as lembranças de bastidores do filme? Como foi o seu contato com Renato Aragão?
Renato brincava o tempo todo com a equipe, com a direção, com os outros atores... Victor Lima também tinha muito humor e entrava na brincadeira. A equipe se divertia muito, na filmagem, nas pausas para almoço ou na volta pra casa. O tempo todo. Trabalhávamos brincando. Renato é generoso, gentil e muito, muito amoroso.

Esse filme foi realmente inspirado no vagabundo Carlitos, de Charles Chaplin?
Com certeza. Por isso, falei antes do romantismo de Renato. Bonga foi criado para ser um tanto romântico, ter um apelo afetivo, emocionante, sem prejuízo da comédia. Renato queria, na época, que Bonga fosse um personagem recorrente: as mesmas características, sempre com aquela roupa, em diferentes filmes etc... Inspirava- se, sim, em Chaplin, conscientemente e disso falou muitas vezes na filmagem.

Que ele falava exatamente?
Trabalhava-se intensamente e conversava pouco, só no almoço ou lanche. Mas ouvi de Renato isso, que o Bonga era um primeiro movimento de um personagem para o qual tinha um projeto maior, de mais filmes, e que sua inspiração era Chaplin.

Renato, muitos anos depois voltou a usar o apelido Bonga em seu programa semanal na Rede Globo, no quadro “Vila Vintém”, dado o seu apreço pelo personagem. Recorda-se?
Vagamente. Na época, eu trabalhava muito e pouco via televisão.

Um anos depois, em 1972, você volta a repetir a parceria com Renato Aragão e Victor Lima, como surgiu o segundo convite para trabalhar. Dessa vez em Ali Babá e os Quarenta Ladrões?
Consequência de meu trabalho no Bonga.

Renato gostava de trabalhar com amigos. É isso?
Não. Eu não fiquei amiga de Renato. Eu tenho certeza de que nos identificamos, que tivemos uma grande empatia... E poderíamos ter sido grandes amigos, com certeza. Se fôssemos amigos, seríamos dos grandes. Mas em nossa profissão é assim: convivemos com um grupo naquele filme, naquela peça. Aí, termina; vamos fazer cada um outro trabalho, com outras pessoas com às quais agora conviveremos. Às vezes, nunca mais voltamos a encontrar aquele ator ou diretor ou fotógrafo; ou talvez o reencontre imediatamente amanhã em outro trabalho, ou daqui a cinco anos... Nunca mais vi Renato ou Dedé ou Victor Lima Só lembro de ter ido uma única vez à casa de Renato, durante um desses processos. E, quando soube da morte de Victor Lima eu só pensava: “Puxa, eu gostaria de terlhe dado ainda pelo menos mais um abraço.” Nem sei se foi Renato ou Victor quem lembrou meu nome para o Ali Babá.

Esse filme já conta com a participação de Dedé Santana. Quais as mudanças que ocorreram com a chegada dele?
Poucas. Didi já não era Bonga, era Didi. Não era mais o vagabundo, mas tinha o mesmo clima de uma história de amor; ele sempre se dando mal no final, mas sem perder a graça.

Quais as semelhanças e diferenças que você encontrou entre Renato e Dedé?
O trabalho era intenso no filme em que eu era atriz principal, assistente de direção, fazendo continuidade de cena. Foi minha primeira e única assistência de direção. Oportunidade que o velho Victor Lima deu a uma jovem atriz com sede de aprender cinema... Eu só posso falar então disto: de Renato e Dedé em trabalho. Um trabalho de muita harmonia. Renato sempre teve a liderança, é natural dele, e os grupos de trabalho precisam ter um líder, alguém que toque, que faça, que resolva, que decida, que levante a bola, que levante o moral da turma quando este fica baixo. Mas ele é tão vocacionado para a liderança que fazia isso sem imposição, sem atritos, uma liderança de parceiro mesmo. Ele é parceiro de verdade dos que trabalham com ele. Dedé e Didi são dois clowns. E as boas duplas de clown são aquelas: em que os clowns têm temperamentos diferentes e às vezes antagônicos; e as que têm um clown dominante e um clown escada”, que é o que prepara a piada que será finalizada pelo outro. Dedé sempre foi “escada”, por natureza, por temperamento, por registro de ator (atores têm registro, assim como na ópera há tenores, baixos, e papéis para cada um)... É ali, nesse lugar, que Dedé é inigualável, magnífico, essa figura histórica... Mas, nas duplas de clown, o “escada” não é, como às vezes se pensa, menor que o clown dominante. E o dominante não sabe ser “escada”, que é um trabalho muito especial e específico, que exige técnica, precisão, atenção, carisma... O clown dominante depende do “escada” para que sua graça funcione; e o outro, dele. Esse era o jogo que vi dos dois. Como dois trapezistas, não há um mais importante que outro. Renato sempre foi o clown dominante na dupla, além de líder; e Dedé, o “escada”.

Renato e Dedé sempre estavam em sintonia, formando uma parceria ideal. Você concorda com isso?
O que pude ver é que Renato tinha muito prazer em trabalhar com Dedé. Uma cumplicidade cênica muito grande. Parceirões, os dois. Um jogo que chegava a ser emocionante, para quem olhava de fora. Combinavam a cena e lá iam eles.

Eles não obedeciam muito o roteiro?
Sim e não. Os dois entravam no set com o texto na ponta da língua, prontos para filmar, na hora certa, e de bom humor às seis ou sete da manhã. Então, ensaiavam. Na hora da cena ou entre uma e outra, um chamava o outro num canto com uma ideia para a cena. Acertavam, levavam a proposta para Victor, o terceiro parceiro no caso, que sempre se divertia muito com o que os dois traziam. O Victor também era conhecido pelo seu refinadíssimo humor... Victor fazia mais algumas sugestões, encontrava a solução cinematográfica e chamava Antônio Gonçalves, diretor de fotografia, que também sugeria outras coisas e, rapidamente e divertidamente, ajustava câmera e luz... e filmava-se. Com respeito ao roteiro e sem atrapalhar o plano de filmagem. Tudo muito rápido. Era um trabalho de equipe, em que todos tinham espaço para inventar, sugerir.

Renato costumava parodiar filmes estrangeiros de sucesso ou adaptar clássicos da literatura. Em Ali Babá, ele usa esse artifício. Que acha dessa diretriz que ele seguiu em seu cinema?
Acho bacana. É uma linha que me agrada, essa de trabalhar sobre mitos, sobre histórias que já estão no inconsciente do público.

Renato Aragão tem fama de ser perfeccionista. Isso procede? Ele acompanha tudo? Ele participava da escolha do elenco?
Sim, perfeccionista demais. Ele gosta de precisão no que faz. Brinca. Brinca; mas é um profissional seríssimo, preocupado em dar o melhor de si, trabalhando junto com a direção. Nunca o vi fazer uma imposição, mas sim colaborar, de forma muito atenta, muito participativa no filme inteiro

Como foi a sua participação no filme. Como compôs a sua personagem?
No Ali Babá era engraçado: eu sentava na cadeira de rodas, fazia a cena, depois corria para anotar a continuidade, reunir os atores no set de filmagem, discutir com Victor as necessidades da próxima cena a ser filmada e de novo sentava na cadeira e voltava à trapezista como atriz...

Em Ali Babá, Wilson Grey fez uma pequena participação. Que tem para falar sobre ele nesse filme, em especial?
Bom, Wilson Grey era tudo aquilo que a gente sabe. Um ator especialíssimo. Trabalhei com ele também no teatro, em A Falecida, de Nelson Rdrigues. Era igualzinho dentro e fora de cena. Era um ator único, uma graça. Chegava já com sua roupa de filmar. O figurino era dele, pessoal; não gostava da interferência do figurinista. Nunca mais o cinema produzirá nada parecido.

Por que, na sua visão, os críticos e a Academia rejeitam os filmes produzidos e estrelados pelos Trapalhões?
Acho que isso está mudando. Já fui procurada por pessoas que faziam teses de pós-graduação sobre Os Trapalhoes. Um preconceito que havia com o cinema de grandes plateias, assim como havia no cinema e no teatro o preconceito com a televisão.

Como classifica o cinema feito pelos Trapalhões?
Eu tenho o maior orgulho de ter participado dessa história. Comercial? Ótimo. Precisamos fazer a formação de plateias, de criar o hábito de ir ao cinema, de ver filmes nacionais... Um cinema feito para grandes plateias, feito com a maior competência, o melhor acabamento... e muito brasileiro.

Gostaria que falasse o que aconteceu para que você e Victor Lima não trabalhassem mais com Os Trapalhões no cinema. J. B. Tanko iniciou, então, uma longa parceria com Os Trapalhões; e você não atuou mais com eles...
Eu nunca mais encontrei Victor Lima, nem Renato (nunca mais nos cruzamos) e por isso não sei lhe dizer. Tanko trabalhava numa linha semelhante à de Victor, e era tão competente quanto... E acho que, para Renato e Os Trapalhões, o melhor mesmo era mudar de atores e de direção, variar, respirar outros ares, explorar outros talentos... Mas, se um dia Renato me chamar outra vez, largo o que estiver fazendo e vou correndo.

Que representa para uma atriz trabalhar em um filme dos Trapalhões?
Olha, eu gostei tanto daquilo tudo! O clima era tão bom, era tudo tão direito, tão limpo, tão fluente! Eu já tinha feito coisas com diretores de Cinema de Arte, se se pode mesmo separar um cinema do outro... E as coisas eram arrastadas, a criação era meio torturada, sofria-se muito naquela época. Bom ator, bom intelectual, bom diretor devia ser sofrido... Coisas da época. E apendi ali que nossa profissão é lúdica e que, quanto mais você se divertir fazendo, melhor fica o trabalho. Para mim, essa é uma página bacana de minha biografia. Meu olhar, de hoje, é amoroso, grato.. e mais não sei. Se sabíamos que fazíamos um filme histórico? Eu não tinha a menor ideia. E, até hoje, apesar de toda a minha experiência, quando faço um trabalho, nunca sei se ele vai morrer ou ficar. Talvez Renato, que é um visionário, tivesse; não sei.